- Eu sei que é difícil, vai por mim, mas tente obedecer sua mãe da próxima vez mocinho. - Disse sorrindo para a criança que estava sentada na minha frente com a barra da calça da perna esquerda levantada ainda. - Foi apenas uma pancada forte mas não quebrou nada. - Disse olhando para a mãe do menino que parecia dizer algo para ele com o olhar. Preocupada? Iria ficar de castigo quando chegasse em casa mais tarde? Nunca saberei. Não culpo o menino, eu sempre estava escalando as coisas por aí e me balançando em cipós achando que era umas das crianças daqueles filme dos pequenos espiões.

- Bom não tem o que fazer, não tem nenhuma hemorragia, e nenhum músculo foi ferido, nesse caso não há nada mais mágico do que passar um pouco de gelo no lugar para desinchar esse galo na canela dele. E mocinho… Sem pular muros até melhorar dessa canela, tá arriscado você bater com ela de novo aonde está machucado, cair e se machucar de forma pior. - Me despedi dos dois logo em seguida e ao olhar para o relógio constatei que já estava no fim do meu plantão. Me encaminhei para um dos armários onde eu guardava minhas coisas e fui tomar um banho para trocar de roupa.

Está sendo um bom finzinho de sábado e enquanto deixava a água caindo sobre meus cabelos e descendo pelo meu corpo visualizei todo o tipo de energia negativa sendo drenada do meu corpo e descendo pelo ralo. Era um ritual que eu sempre fazia no fim do dia para não levar a energia do hospital para casa. E normalmente sempre funcionava.

Me vesti pensando no que comeria mais tarde. Lasanha? Pizza? Talvez chamasse meus amigos lá para casa hoje, faz tempo que não puxo um com meus amigos e que não rebolamos até o chão a madrugada toda. Realmente tentador. Saio com o cabelo meio bagunçado e sigo na direção da saída do Maria da Conceição onde paro para chegar se tive alguma ligação perdida ou notificações novas no Witchgram.

Mas no momento em que eu abro o aplicativo de fotos meu telefone vibra com um número bloqueado, já estava enfiando o dedo na parte vermelha e já estava quase empurrando ele pro lado para ignorar a ligação quando um arrepio na minha nuca me faz pausar o movimento. Ah! Deve ser besteira minha, é algum amigo bobo que aprendeu a bloquear o número e tá me ligando assim pra me passar um trote. Eu atendo.

Já estava de boca aberta pronto para soltar uma linha de palavrões quando uma voz feminina fala e desliga antes que eu pudesse fazer qualquer coisa. Me sinto automaticamente estático. Quem havia feito aquela ligação? Quem era essa mulher? O nome que ela mencionou não está mais no meu vocabulário a muito tempo. Demoro quase um minuto completo para raciocinar sobre o que ela falou. minha mente se encontrava em transe enquanto o tuu tuu tuu do telefone soava em meu ouvidos. Rômulo? Rômulo está em Seropédica… Foi o que ela disse… Mas Rômulo? Esse nome já estava a tanto tempo enterrado no meu subconsciente que eu nem associava mais esse nome a pessoa mas algo o jeito que a mulher falou engatilhou algo em minhas lembranças. Meu pai? Meu pai está em Seropédica?

Sinto uma porrada no meu braço me tirando de meu transe, eu estava parado boquiaberto na porta do hospital com meu celular numa mão e uma malinha na outra, uma senhora tinha acabado de me bater com um leque me pedindo passagem. - Me desculpe senhora. - Consegui dizer saindo do caminho e olhando momentâneamente para dentro e para fora do hospital antes de começar a andar para o lado de fora… O que eu devo fazer?

Resolvi que iria passar no melão violeta e tomar um café para tentar pensar no que fazer. Entrei no estabelecimento e pedi um café e enquanto o café não vinha peguei o telefone novamente e tentei mexer em alguma coisa para tentar descobrir se tinha como ligar de volta para o tal número. Quando o café chegou eu estava fuçando o Google mas nada que eu tinha pesquisado tinha me dado alguma luz de que eu iria poder fazer isso. A possibilidade de que era apenas um trote estava pairando sobre minha mente mas aquela sensação estranha que fez minha nuca se arrepiar me dizia que se realmente era um trote deveria ter sido feito por uma pessoa que não gostasse de mim, mas não gostasse de verdade porque não consigo imaginar outro motivo.

Eu mesmo não consigo me lembrar muito de meus pais. Nenhum dos dois, nem Rômulo e nem Vitória, só conseguia me lembrar vagamente da sensação de afeto vinda por parte de minha mãe, mas de meu pai eu realmente não me lembrava e nem sentia nada. Quando vejo meus pacientes crianças no hospital, a sensação de familiaridade que eles têm com os pais me é algo que eu teria com meus irmãos mais velhos, mas mesmo assim ainda é muito diferente para mim porque eles tem apenas três anos a mais do que eu.

Vovó Ceci sempre foi muito carinhosa mas não falava muito do passado, dizia que nossos pais eram lindos, e formavam uma bela dupla mas eu não me lembrava nem dos rostos dos mesmos. E se eram tão felizes e perfeitos porque foram embora? Ela nunca sabia responder essa parte.

Já cansei de perturbar Becca e Rafa sobre o assunto mas nem eles mesmo deveriam saber, o fato é que o assunto não ganhava nenhum fato novo quando perguntado a eles. O fato é que eu cresci, e com a maturidade aprendi a lidar com aquele sumiço repentino, não só eu como meus irmãos mais velhos aprendemos a lidar com nossos problemas e quando as coisas apertaram nós cuidamos uns dos outros. Nos viramos, fechamos nossas cicatrizes.

O fato é que essa ligação não faz sentido, eu lembro vagamente de uma treta entre meu pai e meu tio um deles morreu. Mas eu era muito novo e nunca soube se meu pai realmente estava morto também ou se ele estava por ai, o mesmo pode-se dizer da minha mãe. Depois que apareceram outras crianças para minha vó cuidar no passado, a gente teve certeza que eles ainda estavam por aí, mas isso já faz tanto tempo…

Eu sinto que preciso ir atrás dessa informação e sem ter bebido o café que estava sobre a mesa, deixo dinheiro para pagar embaixo do pires e saio em direção ao hospital novamente.

Deixei uma mensagem formal na secretaria do hospital dizendo que por motivos familiares eu precisaria me ausentar por um período de tempo não especificado. Hoje é sábado e eu vou precisar ir para o Rio de Janeiro ainda para investigar essa situação, não sei o que eu posso estar indo enfrentar, ainda preciso considerar a hipótese de ser uma armadilha. Nesse caso seria burrice ir sozinho e não chamar meus irmãos, eles também fazem parte da família e merecem saber o que está acontecendo tanto quanto eu.

Mas o tom daquela voz dizendo que Rômulo estava em Seropédica indicava que algo precisava ser feito com urgência e assim então eu precisaria ir o mais rápido possível, meus irmãos sendo muito mais racionais do que eu com certeza iriam pedir para esperar e esperar é algo que eu não consigo fazer. O melhor a se fazer então seria resolver e voltar com as informações que eu conseguisse. Okay, eu também queria mostrar pra eles que agora eu estava crescido e conseguia fazer as coisas sozinho, que poderia dar orgulho para eles também, além de tanto trabalho.

Aquela noite foi agitada enquanto eu preparava minhas coisas para aparatar, eu não gostava de fazer isso agitado como estava, mas era a forma mais rápida de chegar lá. Respirei fundo, mentalizei o ponto de ônibus do lado do posto de gasolina rodeado por mato que se localizava no Km 42 em Seropédica. Se tinha algum lugar para procurar esse lugar era ali. Mesmo passando a infância com os irmãos e a avó em Monte Nevado, em algum momento eu vim visitar um amigo da escola lá e me apaixonei pelo lugar. Passei a pedir para ir prá lá mesmo depois de seguir caminhos diferentes do menino da escola e quando aprendi a aparatar era o lugar em que eu gostava de fugir quando as coisas ficavam estranhas a ponto de eu não querer correr para a barra da saia dos meus irmãos.

Por isso era muito estranho que aquela voz tenha dito que Rômulo estaria aqui, quem mais além dos meus irmãos mais velhos sabiam desse lugar? Nem mesmo Vó Ceci sabia desse lugar e nem os mais novos… As possibilidades de ser um trote eram muito menores seguindo essa linha de raciocínio, mas o medo de ser uma emboscada ainda se mantinha presente de modo que empunhei a varinha, fechei o olho e aparatei.

Cheguei no lugar meio tonto. Mantive os olhos fechados por mais uns três segundos antes de abri-los e olhar em volta. O sol já estava bem baixo e eu conseguia apenas ver o rosáceo do céu ao longe de um lado e a escuridão do outro. A silhueta das árvores negras sobre aquela coloração do céu me trouxeram boas lembranças que não foram totalmente acessadas pelo nervosismo de estar sendo observado.

O que eu estava pensando? Vir até aqui sem nem avisar a ninguém? Sem saber por onde começar a procurar? Ainda mais nesse horário! Mas eu respirei e resolvi pelo menos dar uma volta ali e ver se as coisas ainda estavam como antes, se eu fosse bem cauteloso talvez ninguém percebesse a minha presença.

O ponto de ônibus estava vazio, havia alguns poucos trabalhadores no posto de gasolina e na outra esquina eu ainda conseguia ver a padaria do seu Carmelo e a loja de quinquilharias da dona Quitéria. Havia menos árvores do lugar do que eu imaginava e se você procurasse bem talvez visse uma daquelas bolas de feno rolando por aí. Não imaginava que o lugar pareceria tão abandonado em alguns poucos anos. Segurei a varinha por dentro do bolso e segui caminhando pela direita do posto onde estava mais iluminado. A energia que deixei no hospital com aquele banho não era nada comparada a energia do meu passado.